ANÁLISE DO ARTIGO 213 DO CÓDIGO PENAL APÓS A REFORMA DE 2009 E SUA APLICAÇÃO NOS CASOS DE VIOLÊNCIA CONJUGAL

ANALYSIS OF ARTICLE 213 OF THE BRAZILIAN PENAL CODE AFTER THE
2009 REFORM AND ITS APPLICATION IN CASES OF MARITAL VIOLENCE

Autores:

Lenir Bezerra da Silva¹

Victor Hugo Land da Silva Carneiro2

 

RESUMO: A reforma do artigo 213 do Código Penal de 2009 foi um importante avanço na proteção da dignidade sexual no Brasil, pois unificou os antigos crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um único tipo penal. A discussão sobre consentimento versus coerção no domínio familiar torna-se particularmente complexa, pois a violência sexual estiver em boa parte escondida em relações afetivas. Portanto, faz-se necessário entender como é interpretado a aplicação do artigo 213 na prática, em situações de estupro conjugal, para checar se reformulação teve o papel de ampliar a proteção das vítimas e de efetivar justiça. Objetivo geral busca discutir, sob uma perspectiva bibliográfica e qualitativa, a aplicação do artigo 213 do CP brasileiro, após a reforma de 2009, em casos de violência conjugal, buscando diagramar seus impactos jurídicos, sociais e interpretativos, bem como os desafios do sistema de justiça para garantir os direitos das vítimas. O presente estudo é qualitativo e embasa-se na revisitação das doutrinas, das legislações e dos estudos acadêmicos disponíveis, além da pesquisa das jurisprudências mais recentes.  Os resultados demonstram que a reforma de 2009 alargou, de fato, a abrangência da proteção penal ao preceito do tipo penal, todavia, a efetividade do artigo 213 ainda se encontra impedida por entraves culturais e institucionais operacionais. Os obstáculos ao reconhecimento do estupro conjugal permanecem, em decorrência de preconceitos arraigados e da naturalização da violência nos vínculos afetivos. Constatou-se que as conquistas de natureza jurídica devem ser acompanhadas por modificações sociais, e a formação continuada dos profissionais do direito, e políticas de acolhimento às vítimas podem possibilitar que a letra da lei atinja seu máximo potencial como protecionismo e como justiça.

Palavras-Chave: Reforma Penal; Artigo 213; Estupro Conjugal; Violência Doméstica; Direitos das Vítimas.

ABSTRACT: The 2009 reform of Article 213 of the Brazilian Penal Code marked a significant step forward in the protection of sexual dignity in Brazil, as it unified the former crimes of rape and violent indecent assault into a single legal category. The discussion surrounding consent versus coercion within the family sphere is particularly complex, since sexual violence often remains hidden within affective relationships. Therefore, it is necessary to understand how the application of Article 213 is interpreted in practice, especially in cases of marital rape, in order to verify whether the reform fulfilled its purpose of expanding victim protection and ensuring justice. General Objective: To discuss, from a bibliographical and qualitative perspective, the application of Article 213 of the Brazilian Penal Code after the 2009 reform, in cases of conjugal violence, aiming to map its legal, social, and interpretive impacts, as well as the challenges faced by the justice system in safeguarding victims’ rights.This qualitative study is based on the review of legal doctrines, legislation, and academic studies, in addition to research on the most recent jurisprudence. The findings show that although the 2009 reform broadened the scope of criminal protection, the effectiveness of Article 213 remains limited by cultural and institutional barriers. The obstacles to recognizing marital rape persist, largely due to ingrained prejudices and the normalization of violence within affective relationships. It was found that legal advances must be accompanied by social change, continuous training of legal professionals, and the strengthening of victim support policies, so that the law may fully achieve its protective and justice-oriented potential.

Keywords: Penal Reform; Article 213; Marital Rape; Domestic Violence; Victims’ Rights.

[1] Graduada e Pós Graduada em Licenciatura em Matemática pela Universidade Federal do Ceará.  Graduanda [2] Graduada em Direito (Bacharelado) pela Universidade da Grande Fortaleza. Email: Lennaadv24@gmail.com

INTRODUÇÃO

A modificação do artigo 213 do Código Penal de 2009 foi um avanço significativo para a proteção da dignidade sexual no Brasil, ao juntar os antigos crimes de estuprar e atentado violento ao pudor no mesmo tipo penal. Essa alteração assumiu a liberdade sexual como um direito humano, irrenunciável a todos os indivíduos, não importando seu sexo e também procurou ajustar o sistema ao novo arranjo das relações sociais. Entretanto, no plano da aplicação de direito nos casos de violência conjugal, salvo raras exceções, é difícil se encontrar, na prática, uma aplicação favorável ao conceito, uma vez que, na maioria dos casos, as relações mencionadas são afetivas, as quais prescrevem relações de poder, de dependência emocional e de silêncio.

A pertinência da pesquisa em torno do artigo 213 reside na sua busca de compreender os desdobramentos jurídicos e sociais da mudança normativa, especialmente, diante da manutenção do estupro conjugal, como fenômeno de silenciamento. Embora o ordenamento jurídico nacional tenha avançado na defesa dos direitos sexuais, ainda existe um hiato entre a norma e sua aplicação. Muitos casos não chegam ao sistema de justiça em face da vergonha, medo, ou da crença de que o casamento o legitime a relação sexual. Refletir acerca das contradições existentes entre o estereótipo da intimidade do ser-humano e da sua luta pela dignidade em torno da violência sexual nas relações afetivas contribuem significativa para a ampliação da consciência jurídica, mas, também social, acerca das violências sexuais. O presente estudo pretende contribuir para a construção de políticas públicas mais eficazes e práticas judiciais de maior sensibilidade em torno do universo das vítimas, com a obrigação também de equilibrar a justiça, a empatia e a efetividade da própria lei.

A pesquisa se desenvolve a partir da seguinte questão central: como a reforma do artigo 213 do Código Penal brasileiro vem sendo aplicada nas causas de violência conjugal, e até que ponto tem ou não contribuído para garantir a proteção das vítimas? Parte-se da hipótese que, mesmo com a ampliação formal da tutela penal, permanecem barreiras culturais e institucionais para a legitimação do estupro conjugal como crime. Estas barreiras são resultado da naturalização da violência sexual entre os laços de afeto e do receio de alguns operadores do direito à respeito de se estabelecer a falta de consentimento no seio do casamento. Com isso, acredita-se que a efetividade da norma esteja não só em razão da reforma legal, mas também na mudança cultural que rompa com um silêncio histórico em torno da violência sexual intradomiciliar.

O estudo faz uso de uma abordagem qualitativa, sustentada na pesquisa bibliográfica de doutrinas jurídicas, legislações, artigos de pesquisa, artigos científicos e jurisprudências mais recentes. A análise proposta, prioriza um diálogo entre a teoria e a prática, propondo-se a verificar as interpretações e práticas contemporâneas do artigo 213 e o seu impacto nas causas de violência conjugal. Este exercício possibilita uma leitura crítica e reflexiva do fenômeno jurídico, articulando com as respectivas dimensões legal, cultural e social do tema.

Objetivo geral busca discutir, sob uma perspectiva bibliográfica e qualitativa, a aplicação do artigo 213 do CP brasileiro, após a reforma de 2009, em casos de violência conjugal, buscando diagramar seus impactos jurídicos, sociais e interpretativos, bem como os desafios do sistema de justiça para garantir os direitos das vítimas.

Objetivos Específicos dentro desse arcabouço:

Analisar as inovações conceituais e as inovações jurídicas trazidas pela reforma de 2009 do artigo 213 do Código Penal, mostrando de que maneira elas mudaram a concepção de liberdade sexual e a tutela penal da dignidade da pessoa humana.

 

Ponderar os atritos entre a evolução da legislação e a persistência da cultura e das instituições que comprometem o efetivo cumprimento da lei, relacionando-o com as práticas de aplicação judicial e a formação dos operadores do direito.

Debruçar-se sobre as contribuições de autores e de estudos recentes a respeito do conhecimento crítico da norma do artigo 213 da CLT buscando apontar para lacunas na produção científica e indicando novos caminhos de análise a respeito da violência sexual no contexto conjugal.

Refletir sobre as possibilidades de construção de uma justiça penal mais humanizada e igualitária, garantindo a proteção total das vítimas e promovendo a efetividade dos direitos sexuais como uma dimensão da cidadania.

 

  1. A REFORMA DE 2009: NOVOS PARADIGMAS PARA A PROTEÇÃO DA LIBERDADE SEXUAL

A alteração do artigo 213 do Código Penal, realizada em 2009, representou um divisor de águas na história do Direito brasileiro, mudando o modo pelo qual o Estado entende e protege a dignidade sexual. Esta alteração legislativa congregou as condutas do estupro e do atentado violento ao pudor, até então tratadas separadamente, em um único tipo penal. Como assinala Medeiros (2020, p. 44), esta unificação reflete “a necessidade de compatibilizar o direito penal aos preceitos constitucionais da igualdade e do respeito à individualidade” ​.  Ao reconhecer que qualquer violação da liberdade sexual da pessoa é um ato de violência, não importando o sexo da vítima, o Código adota uma compreensão mais aberta e humanitária da sexualidade e da violência.

Nesse quadro, a liberdade de sexualidade teria sido entendida como um direito núcleo, que diz respeito não apenas à integridade do corpo, mas também à autonomia em relação a seu próprio corpo e à autodeterminação. Para Campos (2021, p. 67): “a reforma rompeu a lógica patriarcal que ainda subjugava o corpo da mulher a concepções morais e familiares”. O novo texto legal afirma que o consentimento é o núcleo da relação sexual, erradicando do ordenamento jurídico qualquer traço de autorização tácita fundada no género ou na condição afetiva dos sujeitos. Essa reforma provocou, por sua vez, o debate sobre a responsabilidade penal das relações sexuais, se tornaram reconhecidos o estupro marital em contextos de relacionamento, antes invisíveis juridicamente.

Logo, a reforma legislativa, além de ampliar a estrutura de proteção penal, provocou novos debates doutrinários e jurisprudenciais; Ferreira (2022, p. 89) sintetiza: “a inovação do artigo 213 exigiu, não apenas uma alteração do tipo penal, mas, provocou a necessidade de uma reinterpretação das práticas investigativas e judiciais”. Desde então, o jurídico passou a conhecer casos em que a falta de consentimento era sutil no sentido de advir de coerção psicológica ou de manipulação emocional. Essa ampliação conceitual levou os operadores do direito a visibilizarem a violência sexual em suas dimensões simbólicas, exposta porém exigindo sensibilidade e a adequada técnica em perceber contextos de invisibilidade das vulnerabilidades.

Apesar do progresso normativo, a efetividade da lei ainda encontra obstáculos nas práticas sociais e culturais instalada. A sociedade brasileira, segundo Lacerda (2023, p. 52), “ainda reproduz mitos que amarram o casamento à posse do corpo do outro, dificultando o reconhecimento da violência sexual conjugal”. Essa resistência cultural faz com que a lei não consiga cumprir sua função, uma vez que várias vítimas sentem-se culpadas, desmistificadas ou desprotegidas ao denunciar o agressor. Dessa forma, a aplicação do artigo 213 não depende apenas da letra da lei, mas da transformação dos imaginários sociais que mantêm a desigualdade de gênero e a negação do consentimento nas relações privadas.

Outro aspecto relevante diz respeito à atuação dos órgãos de justiça e de segurança pública. Como constata Tavares (2020, p.110), “a formação deficiente dos profissionais do sistema penal para questões de gênero e sexualidade compromete a efetividade das normas protetivas”. O que ocorre é que muitos deles são “arquivados por insuficiência de provas” esquecendo-se que a violência sexual no espaço da casa não se dá apenas na via da força física, mas também é imposta através da coerção moral ou do medo. A reforma de 2009, embora necessária, demanda que o sistema de justiça esteja preparado para reconhecer e acolher a pluralidade das formas de violência, as quais perpassam o espaço conjugal.

Por isso, a mudança legal deve ser compreendida no marco de um processo mais amplo de mudança social envolvendo educação, políticas públicas e uma cultura. Como argumenta Rocha (2021, p. 93), “a lei por si só não transforma realidades, requer-se um movimento pedagógico e institucional que desnaturalize o abuso e legitime o discurso das vítimas”. A proteção da liberdade sexual se dá a partir do diálogo entre Estado e sociedade civil, o que implica garantir campanhas educativas e práticas jurídicas sensíveis ao trauma. A reforma de 2009 é portanto um ponto de partida para a construção de uma justiça humanizada e não um ponto de chegada.

Do ponto de vista jurídico, o novo texto do artigo 213 deu mais consistência ao sistema penal brasileiro com os tratados internacionais de direitos humanos. Silva (2022, p. 78) chama atenção para que “a incorporação de uma visão extensa da violência sexual traz o Brasil para mais próximo das convenções internacionais de proteção das mulheres e das minorias sexuais”. O que nos leva a entender que o direito penal deve provocar ações não somente punitivas, mas também preventivas e reparatórias. A proteção da liberdade sexual passa, assim, a fazer parte do essencial no campo de direitos de cidadania e dignidade humana, isto é, o reconhecimento do corpo como território inviolável.

Entretanto, para que a reforma receba todo o seu pleno significado, é preciso fechar a lacuna existente entre a norma e a prática. De acordo com Alves (2023, p. 61), “a resistência institucional à escuta empática das vítimas ainda constitui um obstáculo à efetividade da legislação penal”. A cultura jurídica, ainda permeada por formalismos e ceticismo, deve assumir uma atitude ética e humanizada, que respeite a fala das mulheres e as sutilezas da violência sexual. Isso implica reformular currículos acadêmicos, educar profissionais e fomentar diálogo interdisciplinar entre direito, psicologia e sociologia.

A consolidação de novos paradigmas também se realiza por meio da efetivação das políticas públicas voltadas para a prevenção e acolhimento. Para Mendonça (2024, p. 84), “a efetividade da lei depende do oferecimento de uma rede que garanta segurança, assistência psicológica e autonomia para as vítimas”. Sem essa estrutura, a norma corre o risco de se transformar em um triunfo simbólico, sem efeitos pertinentes no cotidiano das pessoas. O combate ao estupro conjugal e à violência sexual requer o casamento entre Estado, instituições jurídicas e sociedade civil, construindo um sistema de proteção articulado e efetivo.

A reforma de 2009 inicia uma nova concepção de justiça sexual, mais próxima da escuta, da empatia e do reconhecimento da autonomia do corpo. O grande desafio consiste em fazer com que o avanço normativo seja traduzido em práticas concretas de respeito e proteção. Como sintetiza Duarte (2023, p. 57): “a liberdade sexual não é garantida apenas pela lei, mas pela cultura que a organiza”. Assim, o artigo 213 reformado é mais do que um dispositivo jurídico — é um símbolo dessa luta por igualdade, pelo direito de dizer não e por uma sociedade que respeite corpo e vontade como expressões máximas da dignidade humana.

2.1. O Estupro Conjugal e as Dificuldades de Reconhecimento Jurídico e Social

O estupro conjugal é uma das formas mais complexas e silenciosas de violência sexual, permeada por dinâmicas de poder e pela construção de laços afetivos que dificultam seu reconhecimento e sua denúncia. Embora a reforma do artigo 213 do Código Penal tenha reconhecido no plano jurídico a possibilidade de ocorrência desse crime no ambiente conjugal, sua efetividade ainda encontra barreiras, tanto de cunho cultural quanto institucional. Conforme observa a autora Lacerda (2023, p. 59), “a cultura patriarcal mantém em funcionamento a naturalização da ideia de que, por um acaso do destino, o casamento estabelece o direito do cônjuge sobre o corpo do outro, apagam-se os limites do consentimento”. Esta ideia naturalizada constitui um obstáculo para se reconhecer a condição de violência sexual doméstica e, assim sendo, para se romper com a teia da impunidade. Para romper com esse paradigma, o sistema de justiça deve perceber que o vínculo afetivo não elimina o direito à integridade e ao respeito pela liberdade sexual.

Um número significativo de casos de estupro conjugal é invisibilizado, porque a própria vítima apresenta dificuldades em reconhecer o abuso como crime. A relação afetiva e a dependência emocional criam um campo de confusão entre amor e coerção, dificultando a denúncia. Rocha (2021, p. 107) assevera que “as mulheres internalizam a ideia de obrigação coniugal e acreditam que a recusa sexual não é possível, pois representa desrespeito ao parceiro”. Tal entendimento reforça a ideia de submissão e inviabiliza o reconhecimento da violência. Além disso, o não acolhimento nos órgãos de segurança pública e o juízo moral que recai sobre as vítimas dificultam o enfrentamento. Assim, o estupro conjugal ainda permanece um crime pouco denunciado, cercado de silêncios que revelam a desigualdade de gênero ainda presente na sociedade brasileira.

Juridicamente, o reconhecimento do estupro conjugal não se expressa apenas na negativa do conceito de consentimento no seio da relação conjugal, muito em voga no Direito Penal, mas avançou mais além, como defendido por Medeiros (2020, p. 71): “a legislação brasileira evoluiu ao reconhecer que o estupro traduz a violação da vontade e não apenas da integridade física, mas essa evolução ainda não se logrou na prática judicial”. Diversos julgadores resistem à aceitação da violência sexual contra a cônjuge, por entenderem a relação conjugal como espaço de privacidade e intimidade. Essa concepção equivocada vai de encontro aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, pois a ausência de consentimento não pode ser relativizada por laços afetivos.

A dificuldade do reconhecimento legal reside, no entanto, na complexidade probatória. Na sua larga maioria, não há testemunhas a serem ouvidas e a violência ocorre no ambiente doméstico, longe dos olhos inclusos do público. Campos (2021, p. 84) assevera que “tanto a falta de provas materiais como o preconceito de gênero fazem com que um testemunho da vítima em muitos julgamentos seja considerado insuficiente”. Esse mesmo contexto traz, ainda, a necessidade de formar os profissionais para que realizem as investigações com escuta sensível e metodologias compatíveis aos casos de violência íntima. O Poder Judiciário precisa entender que o trauma sexual não se apresenta nas suas manifestações visíveis, e que o testemunho da vítima, quando concatenado e coerente, é um meio legítimo e suficiente de prova.

Além dos obstáculos jurídicos, obstáculos psicológicos e sociais dificultam a denúncia. Ferreira (2022, p. 95) insta que “o medo da exposição pública, a vergonha e a dependência financeira formam uma rede de silêncios que mantém a vítima aprisionada ao agressor”. O estigma sobre quem denuncia o parceiro é alimentado por valores sociais ainda latentes vinculados ao papel da mulher como aquela que deveria obedecer e manter o lar. A inexistência de políticas públicas de apoio, como abrigos e assistência psicológica, agrava o isolamento e inviabiliza que o subsídio da ruptura possa ocorrer de forma segura. De tal modo, a luta contra o estupro conjugal deverá ser entendida como um combate multidimensional, conjugando direito, saúde mental e assistência social.

O papel da mídia e do discurso social também assume um papel central nesta luta. Alves (2023, p. 68) advoga que “a forma como a sociedade se pronuncia – ou silencia – sobre o estupro conjugal tem consequência direta na maneira de acolher as vítimas e na legitimidade das denúncias”. A violência sexual conjugal é ainda frequentemente relativizada como sendo “conflito doméstico” ou “problema do casal”, o que enfraquece sua gravidade penal. A desconstrução destes discursos passa por uma comunicação social responsável, que faça uma educação da população para conceber o consentimento como manifestação da autonomia e não como o que deveria ser um dever conjugal. A visibilidade pública do tema é uma ferramenta vital para romper com o ciclo de invisibilidade e impunidade.

Tavares (2020, p. 118) entende que tal reconhecimento é “impensável sem um questionamento radical e uma verdadeira destruição dos valores dominantes dos sexos”. Tais valores são constitutivos das relações de gênero, no sentido em que historicamente, tem-se dado aos homens a autoridade sobre os corpos das mulheres e da própria relação amorosa. Por outro lado, a totalidade dos valores sociais e seus sistemas de crença não se refere apenas a um fenômeno assimétrico em relação ao gênero mas, sim, manifesta o atual sistema patriarcal ocidental e as relações de dominação. Portanto, para implementar a reforma desejada pela Lei Maria da Penha, é necessário fazer frente a esse estado de dominação das mulheres para superar aquilo que Duarte (2023, p. 74) diz: “a verdadeira revolução da liberdade sexual ocorre quando o consentimento é visto como um direito não negociável, até mesmo por trás do casamento”. Implementar essa lógica exige esforços coletivos do Estado, das instituições e da sociedade civil, para assegurar o respeito pelo corpo e pela vontade de cada um, em qualquer relação. Vencer o tabu do estupro conjugal consiste em reconhecer que a liberdade sexual é parte da cidadania e que a violência, independentemente do laço afetivo, não pode ser legitimada.

De modo sintético, o enfrentamento do estupro conjugal não está apenas no domínio jurídico, mas é um componente adicional de um projeto de justiça social e igualdade de gênero. Promover o artigo 213 como um instrumento de proteção exige uma mudança cultural que troque o silêncio pela escuta e a negação pela responsabilização. Apenas assim o direito penal poderá novamente corresponder à sua função ética e protetiva, garantindo às vítimas o direito a existir sem medo e a exercer plena autonomia sobre seu corpo. Esta é a essência da liberdade sexual da qual a reforma de 2009 procurou preservar, e que a sociedade deve ainda aprender a concretizar.

2.2. Entre Avanços Legislativos e Desafios Culturais: Caminhos para a Efetividade da Lei

A reforma de 2009 do artigo 213 do Código Penal foi uma sem dúvida um passo à frente na efetivação dos direitos sexuais e sua proteção criminal. Contudo, a distância entre o que está na letra da lei e a sua aplicação revela que a transformação jurídica não traz, em sua essência, a transformação social. Como diz Pacheco (2020, p. 91), “a lei avança mais rápido que a mentalidade coletiva; é neste hiato que opera a injustiça”.  A manutenção de estigmas, preconceitos e posições moralistas em relação à sexualidade limitam ainda a efetividade do dispositivo legal. A superação dessa realidade requer uma atuação intersetorial, que conecte o direito, a educação e as políticas públicas em prol da valorização do consentimento e da igualdade de gênero. A eficácia da lei está, em grande parte, ligada ao modo como ela é interpretada e aplicada pelos operadores do direito.

Oliveira (2021, p. 105) diz que “a cultura institucional do sistema de justiça ainda resiste a assimilar a imagem de violência sexual doméstica como violação da autonomia e não como desentendimento conjugal”. Essa resistência está arraigada em séculos de cultura patriarcal, que naturalizou a masculina dominação sobre o corpo e a vontade da mulher. Mesmo com a claridade normativa da reforma, diversos julgamentos ainda têm reproduzido discursos de culpa, desconfiando da palavra da vítima. Para romper essa estrutura, é necessário educar ética e humanizadamente, para que o profissional do direito possa apreender a dimensão social e subjetiva da violência sexual.

Outro desafio a ser vencido diz respeito às políticas públicas, as quais possuem descontinuidade e falta de inter-relação. De acordo com Ribeiro (2022, p. 123), “a falta de políticas de prevenção e acolhimento cria um abismo entre o reconhecimento formal da lei e sua aplicabilidade real”. A eficácia do artigo 213 não se encontra relacionada somente à punição, mas envolve também mecanismos de proteção, assistência psicológica e fortalecimento das vítimas. Quando o Estado não fornece apoio material e emocional, o caminho jurídico se transforma num novo instrumento de dor. Logo, é necessário, pois, que as políticas públicas andem junto com a legislação, permitindo que o direito à liberdade sexual se converta numa realidade do cotidiano.

De certo modo, o fator cultural é talvez a barreira mais trágica à eficácia da lei. Santos (2023, p. 79) diz que “a sociedade brasileira ainda convive com a naturalização da violência sexual ainda mais acentuada quando esta aparece em ambiente familiar”. Tal naturalização gera um pacto de silêncio que protege o autor do delito e isola a vítima. Modificar isso exige investimento em educação de gênero desde as primeiras séries do ensino oficial, com o objetivo de incutir o respeito pelas diferenças e a noção do consentimento como valor humano irrenunciável. A cultura do respeito não se resume a sanções, mas a práticas educativas que devem formar todos os cidadãos para uma cidadania empática e consciente.

Da mesma forma, o papel dos meios de comunicação e das redes sociais também se revela como força na construção de uma nova consciência coletiva sobre o estupro conjugal. Conforme Martins (2019, p. 88) afirma, “A cobertura sensacionalista de casos de violência sexual frequentemente reforça estereótipos e banaliza o sofrimento das vítimas”. Por outro lado, os movimentos digitais e as campanhas de conscientização estão permitindo romper o silêncio e aumentar o debate acerca da autonomia sexual. A democratização das informações possibilita que as vítimas reivindiquem seus direitos, reconhecendo que a modalidade de ser abusada não é um destino, mas uma violação, esta que deve ser denunciada e pode ser. Desse modo, a comunicação responsável se torna uma aliada para efetivar a lei.

A construção do fortalecimento das redes de apoio comunitário é também um dos caminhos essenciais para estabelecer novos desafios culturais. Pereira (2024, p. 56) destaca que essas “as redes locais de solidariedade e escuta empática são como pontes entre a vítimas e as instituições formais de justiça”. Muitas vezes esses são coletivos feminista e outras organizações civis, e administram as ineficiências do Estado. Amparar as vítimas de acolhimento imediato, apoio jurídico e suporte psicológico são ações que tornam o de denunciar menos torturante e mais acessível àquelas que não conhecem seus direitos. O diálogo entre sociedade civil e poder público, portanto, é indispensável para que o art. 213 inverta o papel de ferramenta de proteção da vítima para um mito legislativo.

A formação continuada de profissionais da Justiça e de Segurança Pública é um dos outros caminhos necessários para a efetividade da norma. Para Nogueira (2022, p. 112), “não há avanço jurídico possível sem a sensibilização dos agentes que a aplicam”. Tornar os juízes, delegados, promotores e defensores cientes do gênero e dos direitos humanos é um passo essencial para evitar decisões parciais e revitimizantes. O acolhimento respeitoso e a escuta ativa e devem ser compreendidos como deveres éticos e não como favores. Essa postura ajuda a construir um sistema de justiça mais acessível, empático e coerente aos princípios da dignidade humana.

O cumprimento da efetividade do artigo 213 requer um contínuo processo de conscientização social e de fortalecimento institucional. Lima (2023, p.. 130) resume que “a lei realiza a sua função quando vai além do texto e se torna a prática habitual de respeito e proteção”. A reforma de 2009 abriu possibilidades, mas é à sociedade que incumbe pavimentá-las por meio da educação, da empatia e do compromisso comunitário, Onde as resistências culturais não são fáceis de serem vencidas, mas são condição indispensável para que a liberdade sexual se torne efetivamente vivenciada. A lei, a este respeito, não constitui somente um instrumento de sanção, mas um pacto civilizatório de reafirmação do respeito ao direito de cada um sobre seu corpo e sobre sua vontade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A análise do artigo 213 do Código Penal, após a reforma de 2009, revelou-se muito relevante, não só para o campo do direito, mas também para o social, dado que ela demonstrou como a proteção da dignidade sexual ainda enfrenta barreiras culturais e institucionais. O problema de pesquisa foi constituído a partir da constatação de que, apesar do avanço legislativo que unificou os primitivos crimes de estupro e violência ao pudor, a norma continua a ter baixa aplicação nos casos de violência conjugal. Este exercício demonstra a persistência de uma estrutura social que, em muitos aspectos, ainda legitima o silêncio das vítimas, aprova a impunidade dos agressores e perpetua a desigualdade no seio das relações íntimas.

Os objetivos foram alcançados, pois o estudo conseguiu relacionar a reflexão jurídica com a análise social, mostrando que a reforma de 2009 não só aumentou a proteção penal, mas também demandou um novo olhar sobre a liberdade sexual e o consentimento. Compreendeu-se que os resultados encontrados reforçam a necessidade de uma leitura da norma mais humanizada e interdisciplinar. A revisão da literatura mostrou que a legislação se atualizou em seu texto, mas sua efetividade depende muito da atuação dos aplicadores do direito e da desconstrução de hábitos culturais que naturalizam o abuso nas relações afetuosas.

A hipótese formulada inicialmente — a de que, mesmo com a ampliação formal da proteção penal, ainda há resistências para a legitimação do estupro conjugal enquanto crime — foi confirmada. As fontes estudadas demonstraram que as barreiras estão tanto na estrutura do sistema jurídico, quanto na formação social e emocional dos sujeitos. O medo, a dependência econômica e a vergonha constituem ainda obstáculos à denúncia e à responsabilização do agressor. Assim, a efetividade da reforma pedirá que a normatização descrita neste estudo não venha desacompanhada de um contínuo processo educativo e cultural, que passe além do alcance da norma penal caracterizada e se realize enquanto práticas concretas de empatia, acolhimento e justiça.

A metodologia utilizada, de natureza qualitativa e fundamentada na pesquisa bibliográfica, foi oportuna, pois o compromisso aqui foi compreender criticamente e de maneira integrada, o fenômeno em discussão. O diálogo entre doutrinas, legislações e jurisprudências possibilitaram uma leitura abrangente e reflexiva sobre o tema. Porém, como em toda pesquisa de caráter teórico, o acesso a dados empíricos sobre a aplicação do artigo 213 em casos concretos apresentou limitações, especialmente em decisões judiciais sobre estupro conjugal, o que evidencia a quase inexistência de registros formais e o silêncio ainda predominante sobre essas ocorrências.

Uma dentre as dificuldades apresentadas são as limitações de acesso a estatísticas oficiais e a estudos de caso sobre o estupro conjugal, que sejam tratados de maneira sistemática. A resistência das próprias vítimas em expor o abuso e o baixo número de publicações acadêmicas recentes sobre o tema representam também dificuldades.  Contudo, estas limitações não invalidam os resultados; ao contrário, reforçam a importância de avançar no debate e promover a produção científica sobre o tema, para edificarmos um saber mais firme e transformador.

Os resultados obtidos permitem afirmar que a reforma dos 2009 foi um passo relevante no caminho do reconhecimento da dignidade sexual como uma dimensão da cidadania, mas que a sua efetividade depende da desconstrução dos mitos e da humanização do sistema de justiça. O artigo 213, ao trazer a liberdade sexual no rol dos direitos inalienáveis, trouxe ao Estado e à sociedade a obrigação de reformular suas práticas, especialmente nas relações afetivas. É preciso entender que o consentimento é uma manifestação de vontade e que na sua ausência, mesmo em ambiente íntimo, há violência.

Desse modo, a efetividade da norma não se dá só pelo seu texto, mas exige ações complementares de educação jurídica, de formação continuada dos operadores do direito e de fortalecimento das políticas públicas para o enfrentamento da violência sexual doméstica. A luta contra o estupro conjugal não deve se resumir à repressão, mas deve também acolher e escutar as vítimas, reafirmando o compromisso da justiça com a dignidade e a igualdade. Como enfatiza o conjunto dos estudos, a mudança cultural é tão necessária quanto a normativa, exigindo que ambas andem juntas.

Sugere-se às futuras pesquisas a importância de desenvolver a dimensão empírica do tema, com análise de casos concretos, escuta das vítimas e uma abordagem comparativa com legislações exteriores. Investigar como se dá a aplicação do artigo 213 nos tribunais e de que maneira vem ocorrendo o acolhimento das denúncias de estupro conjugal pode trazer novos caminhos para a reforma da justiça sexual no Brasil. Somente ao dar continuidade ao debate, ancorado na ciência e no cuidado humano, será possível construir uma sociedade onde a liberdade e o respeito a vontade do outro sejam efetivamente reconhecidos como as bases da ligação entre os seres humanos e da dignidade humana.

 

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[1] Graduada e Pós Graduada em Licenciatura em Matemática pela Universidade Federal do Ceará.  Graduanda em Direito (Bacharelado) pela Universidade da Grande Fortaleza. Email: Lennaadv24@gmail.com

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